Nunca tinha lido nenhum livro de Pepetela, pseudônimo de Artur Pestana, escritor angolano de quem já tinha ouvido falar muito bem. Recentemente, caiu em minhas mãos um romance de sua autoria, chamado Predadores. Li e gostei muito.
Nesse livro, Pepetela retrata com um certo desencanto a sociedade angolana dos tempos atuais, que não caminhou muito para a direção sonhada pelos guerrilheiros socialistas que lutaram pela liberdade e para construir uma sociedade – como se deduz pelo título e pelo enredo – sem predadores.
O livro mostra, entre outras coisas, a trajetória de um personagem que começou a desapontar depois da independência do país, em 1975. Isso sem ter tido nenhuma participação política durante a guerra, mas que manipulou a história de seu passado, se autoproclamando um grande revolucionário ligado ao MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), tendência guerrilheira de tendência marxista que, com apoio dos cubanos, depois da independência teve que enfrentar duas outras guerrilhas para permanecer no poder, ambas de direita: a UNITA (União Nacional para Independência Total de Angola) e a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), uma atacando pelo sul e outra pelo norte, com apoio da África do Sul e dos Estados Unidos.
Esse personagem, de nome José Caposso, mais que o que chamamos aqui de “alpinista social”, um aproveitador corrupto, quando lhe foi conveniente, mudou seu nome para Vlademiro, dizendo que o nome lhe fora dado pelo pai em homenagem a Lenin. Fazendo amizades com novos poderosos, cavando favores e se apropriando do que podia, tornou-se muito rico. E fazendo pose de revolucionário. Enquanto isso, verdadeiros revolucionários, gente que se estropiou pisando em minas, se feriu de outras maneiras. Às vezes acabavam tendo que mendigar nas ruas. Alguns lutadores de verdade ocuparam cargos importantes, sim, como o próprio Pepetela (isso não faz parte do livro), que participou da guerrilha lutando pelo MPLA, que foi vice-ministro da Educação durante o governo de Agostinho Neto.
Houve gente que manteve a decência, mas houve quem se locupletou e também gente que nunca fez nada e conseguia “provar” com falsas testemunhas que um sujeito que sempre foi honesto e manteve sua linha revolucionária na verdade era um traidor.
O certo é que como acontece em quase todos os processos revolucionários, enquanto algumas pessoas lutam e se arriscam, há quem dedique seu tempo ao planejamento de um futuro à conquista de favores e poderes pessoais; manipulando, se ajeitando, cavando contatos e postos. E quando o grupo rebelde toma o poder esses sujeitos são capazes de “provar” que sempre foram os bons, enquanto os batalhadores eram na verdade os aproveitadores.
E não é só em processos revolucionários, também no processo de democratização de um país, nos partidos, nos sindicatos e em tudo. Quando se chega ao poder, muitas vezes os companheiros de verdade são colocados de lado, enquanto oportunistas deitam e rolam, tornam-se os companheiros do momento. Quem cobra princípios é visto como porra-louca, maluco ou desleal, e pode ser considerado inimigo maior do que os verdadeiros inimigos.
Mas além de apreciar a qualidade do romance e de ter inevitavelmente lembrado de certos personagens (que não são incomuns por aqui também), me diverti observando não só o estilo literário, o modo de construir frases, mas também o vocabulário do português de Angola, recheado de palavras de origem dokimbundo e de outras línguas nativas.
No livro publicado aqui pela editora Língua Geral, foram respeitadas “as singularidades lexicais, ortográficas e sintáticas do português de Angola”. Então, há muitas palavras que não estão no vocabulário brasileiro, assim como não há no português de lá muitas palavras que usamos aqui, de origem tupi, principalmente, e também gírias.
Isso me remeteu mais uma vez ao batido tema da unificação da língua portuguesa, uma besteira enorme. Temos milhares de palavras tupis no nosso vocabulário, lá eles têm muito do kimbundo – em Moçambique certamente devem ter expressões deles e assim por diante. Claro que as telenovelas brasileiras levaram para outros países lusófonos expressões típicas daqui, mas nem todas.
Achei muito bom o tal respeito ao português falado em Angola. “Traduzir” para o português falado no Brasil empobreceria muito o livro. A gente vai lendo, deduzindo o significado de algumas palavras, procurando os significados de outras em bons dicionários ou mesmo na internet, e assim por diante. E enriquecemos o nosso vocabulário. Nem por isso deixamos de compreender e apreciar o texto.
Vou citar algumas palavras aqui, tanto de gírias locais como de línguas indígenas. Aí vão:
Kambo é camarada, companheiro.
Kimbo é povoado rural, aqui chamamos de bairro rural ou vila.
Musseque é aglomeração de moradias pobres, aqui chamamos de favela.
Bué é muito, bastante.
Kumbu é uma gíria para dinheiro, aqui traduziríamos por grana, “bufunfa”…
Haka! é uma interjeição de espanto, aqui, conforme o tradutor, poderia ser caramba!, nossa!, ou o nordestino vixe!.
Mini-autocarro lá é o que aqui chamamos de van.
Kuribotices são fofocas
Mujimbo é boato.
Kilapi é calote.
Kinhunga é uma gíria para pênis, o equivalente a piroca aqui.
Kitata é prostituta.
Puxar passas é o que aqui chamam de puxar fumo, fumar maconha (que lá éliamba).
De borla é de graça.
Caxico é bajulador, aqui o chamaríamos de puxa-saco.
Muadié é individuo de respeito.
Pagar a gasosa é dar propina.
Chá de caxindé é capim cidreira.
Engonhar é estar com preguiça de trabalhar.
Numa certa altura, Vlademiro, que não acredita em feitiçarias diz à mulher que o que chamam de feiticeiros “são mambos de matumbo do mato”, quer dizer, numa “tradução” livre, curandeiros de caipiras da roça.
Maka é um problema grande, delicado ou complexo. Quando o sujeito não faz alguma coisa porque não quer makas, podemos dizer que ele quer evitar encrencas brabas.
Vlademiro certa vez se pergunta “que tipo de empresa criar. Ou cassumbular, que sempre foi mais fácil”. Cassumbular aí é se apoderar de alguma coisa de alguém.
Quando diz que está marimbando, ele quer dizer que está pouco ligando para alguma coisa.
Um personagem, menino que vive nas ruas, vendendo pilhas, tem que brigar muito para manter seu espaço, brigar até por um buraco para dormir. Mas ele encara quem tenta tomar o espaço dele: “Aprendi um bué de bassulas”. Ou seja: “Aprendi um monte de golpes para derrubar o adversário”. Mas às vezes tem quecorrer do pente (o rapa que como aqui toma coisas dos camelôs – lá não existe essa palavra) e dos caínga (polícia, que os achaca como aqui) e se vacilar pode até ir para a kionga (cadeia).
Algumas coisas a gente deduz sem “traduzir” perfeitamente. Por exemplo: ele diz que cheirar gasolina o deixava “porreiro” e que comia só coisas “compradas nas zungueiras”.
Enfim, ler Predadores, de Pepetela valeu muito para mim. E acho que valerá para outros leitores.
***
Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo,Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
Fonte:http://blogdaboitempo.com.br/
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