domingo, 17 de agosto de 2014

Leituras interessadas da imprensa

Por Clóvis Barros Filho


Recentemente, a imprensa brasileira tem dado destaque para artigos sensacionalistas da mídia internacional para destruir a credibilidade do Governo Federal. E isso não é um fenômeno atual. É notório saber que as poucas famílias que hoje monopolizam os meios de comunicação no Brasil militam politicamente em prol de correntes conservadoras e de extrema direita desde o golpe civil-militar de 1964, que em retribuição censurou, perseguiu e matou todo jornalismo independente ou de oposição às classes dominantes do período.
Fotos desabonadoras, títulos de artigos capciosos, linguagens depreciativas e editoriais acalorados são recursos constantemente utilizados para desqualificar todo tipo de política desalinhada aos interesses da elite paulistana. Porém, essa prática usual adotada pela imprensa já não cola mais. Após décadas utilizando os mesmos recursos de manipulação1, e da circulação de informações alternativas nas redes sociais, a população criou anticorpos.
Ciente do desgaste desse modelo de jornalismo opinativo, a imprensa adota outra estratégia que tem ganhado fôlego na internet. Trata-se da utilização de artigos opinativos e de editoriais depreciativos sobre o governo brasileiro publicados em blogs e jornais estrangeiros. Dois casos recentes que tiveram grande repercussão: a acusação do jornalista dinamarquês Mikkel Jensen sobre extermínio de moradores de rua em Fortaleza e o artigo opinativo sobre a diplomacia brasileira feita pelo jornalista John Paul Rathbone.
A versão eletrônica da revista Veja publicou, no dia 15 de abril, na coluna de Augusto Nunes, uma matéria com o título “Jornalista dinamarquês desiste de cobrir a Copa depois do que viu em Fortaleza”.2 Segundo o autor do artigo, Mikkel Jensen, o governo brasileiro estaria eliminando crianças de rua para deixar a cidade limpa para os turistas estrangeiros. Essa é uma acusação grave, pois afirma que praticamos uma política de higiene social nos moldes do nazismo. Não demorou muito para outros meios de comunicação replicarem a notícia e assim causar um alvoroço nas redes sociais.
No dia seguinte, ninguém mais falou sobre o assunto. Os jornalistas sérios foram investigar as denúncias e ficaram surpresos. O jornalista “independente” não era freelanceer de nenhum jornal de seu país. Ninguém o conhecia na Dinamarca, nem publicaram seu artigo. Nenhuma outra mídia europeia tomou conhecimento do caso. Primeiro, porque o jornalista se manifestou por meio de um post em seu insignificante blog. Segundo, o autor indiretamente acusou os demais jornalistas internacionais que estão trabalhando no Brasil de ajudarem o governo brasileiro a omitir o extermínio dos moradores de rua. Há uma conspiração internacional para dizimar os pobres desabrigados no Brasil? O jornalista apresentou alguma prova concreta do ocorrido?
O artigo publicado no Financial Times (FT)3 foi utilizado pela imprensa de maneira menos grotesca que a anterior. De caráter estritamente opinativo, o jornalista John Paul Rathbone critica a diplomacia brasileira “suave” pelo seu não alinhamento aos interesses estadunidenses nas Nações Unidas. Afirma ser ridículo o país almejar um assento permanente na ONU apoiando “ditaduras” como a Venezuela e o Irã, opondo-se à construção de uma base americana na Colômbia e omitindo- se na votação das sanções contra a Rússia no caso da Crimeia. O jornal FT é historicamente alinhado com os interesses liberais de Wall Street e do Lloyd’s of London e extremamente crítico aos governos antiliberais sociais democratas como a Alemanha, a França, o Canadá, a Rússia e o Brasil.
Todos os chamados “erros” diplomáticos brasileiros refletem os ideais humanistas consagrados pelo Itamaraty. A defesa brasileira da Venezuela mostra o apoio ao sistema democrático que elegeu Nicolás Maduro, democracia esta que até os Estados Unidos reconhecem. A “ditadura” está na cabeça do jornalista. Além disso, a política suave em relação ao Irã não é nada comparada ao apoio político e militar que os Estados Unidos e a Inglaterra oferecem às monarquias tirânicas da Arábia Saudita e do Kuwait, regimes que são mais autoritários e infratores dos direitos humanos do que Teerã. A recusa brasileira de uma base militar americana garante a paz e estabilidade na América do Sul, algo difícil de aparecer quando os norte-americanos decidem interferir. Por fim, a recusa do Brasil em apoiar a intervenção militar na Rússia ou os apoiadores do golpe neonazista na Ucrânia mostra nossa coragem em reprovar todas as superpotências envolvidas diretamente no caos que se tornou o Leste Europeu.
Muitos jornais classificaram o artigo opinativo de “reportagem”, para garantir um status de imparcialidade e credibilidade. A reportagem difere-se de um artigo opinativo por se referenciar a pesquisas de campo, entrevistas e testemunhos diretos das partes envolvidas, o que não aconteceu.
Outros jornais e revistas publicaram o texto traduzido do FT sem fazer uma análise do conteúdo, sem criticar as posições e argumentos, e sem consultar o Itamaraty ou o Governo Federal, o que significa que os editores do veículo de comunicação concordam com a fonte e assinam junto com o autor. É a típica estratégia: “São os gringos que estão dizendo, não sou só eu...”.
1 Indico a leitura do trabalho sobre a manipulação da notícia no fotojornalismo brasileiro de Bernardo Issler, “As máscaras de Barbie: um estudo dos con itos simbólicos no fotojornalismo”. In: BARROS FILHO, Clóvis (org.). Comunicação na polis: ensaios sobre mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2002

Fonte: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/95/leituras-interessadas-da-imprensa-313266-1.asp

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