terça-feira, 11 de março de 2014

Experiência real cubana: estudante passa 21 dias na ilha e relata suas observações.

O que a universidade não ensina: estudante brasileiro de filosofia relata sua experiência na brigada latino-americana de solidariedade a Cuba



Relato de uma experiência vivida em Cuba

por Rafael da Silva Oliveira*


Algumas considerações iniciais

Acima de toda politicagem, conflitos ideológicos, aversão ao imperialismo norte-americano, simpatia pelo socialismo, entre outras questões que se colocam quando falo sobre Cuba, é necessário afirmar que se trata de um país maravilhoso, com pessoas maravilhosas, rico em cultura, um povo politizado e solidário, e, independente do sistema político que Cuba tem, teve, ou terá, os Cubanos são admiráveis.

Aparentemente não há um conhecimento final e absoluto sobre coisa alguma, mas posso afirmar que 21 dias em Cuba - conhecendo Havana, Artemisa, Caimito, Santa Clara, Varadero, Playa Giron e Pinar del Rio, hospedando-me em um acampamento de brigada de solidariedade, bem como hotéis e até mesmo alguns dias na casa de uma simpática família Cubana, presenciando e convivendo, inclusive, o cotidiano da mesma - me proporcionou um certo esclarecimento sobre o país que levaria anos lendo artigos, matérias, livros ou relatos para alcançar, correndo o risco dos interesses individuais e ideológicos de tais fontes de informações, agisse de modo partidário e me traísse ao alimentar-me com mentiras sobre a ilha. E com o comprometimento de ser o mais honesto possível neste artigo, inicio uma crônica sobre esta experiência vivenciada no decorrer de 16 de janeiro a 06 de fevereiro de 2014, sem deixar de aconselhá-los a ir para Cuba e viver suas próprias experiências pessoalmente.


Relato

Os três primeiros dias, antes do início da programação da brigada, fiquei hospedado em um hotel próximo à Praça da Revolução, éramos dezessete brasileiros. Ao chegarmos, fomos surpreendidos por crianças que brincavam na rua do hotel, elas correram em nossa direção, agitadas e alegres, nos abordaram perguntando nosso nome e nacionalidade, olhares curiosos de ambos os lados, fitávamos nossas roupas, calçados e penteados, em tais aspectos, não encontrei diferenças das crianças brasileiras, todavia, a maneira como elas brincavam livres e despreocupadas pelas ruas, destacava uma notável divergência da realidade brasileira: elas estavam próximas, juntas, pessoalmente, conversavam e se interagiam fisicamente e não somente por redes sociais, a internet que aproximou quem está longe na medida em que distanciou quem está perto, transformando a relação interpessoal em algo frio e virtual, faz qualquer brasileiro olhar para aquelas crianças e lembrar um passado próximo, antes da era virtual. Foi um momento de nostalgia e satisfação em saber que este tipo de infância, está presente em Cuba.

A primeira impressão do país foi muito interessante, a cidade de Havana é muito dialética, isto é, opostos se dialogam naturalmente o tempo todo, um Chevrolet fabricado em 1957 com a pintura gasta, possui um DVD automotivo Pioneer e um adesivo no vidro traseiro do famoso jogo de Playstation chamado Need for Speed underground. Afirmo que Cuba não parou no tempo como alguns meios de comunicação diz, é claro que há construções e carros antigos, porém há muitos carros novos também, a maioria são modelos europeus, como Peugeot 206 e alguns modelos da Fiat e Volkswagen (Uno, Gol, Polo, etc). Minha primeira amizade cubana surgiu com Lázaro, motorista de ônibus, casado e com filhos, à favor do atual governo e do socialismo, comentei que havia me surpreendido com tantos carros novos em Cuba, ele me explicou que a maioria deles são propriedade do estado, para uso de seus funcionários que exercem profissões que realmente necessitam de um veículo para trabalhar, os carros antigos, são carros particulares e geralmente já pertenciam às mesmas famílias antes da Revolução, curiosamente, Lázaro me disse que sonhava em conhecer três países: Brasil, Colômbia e Estados Unidos da América, sim, EUA, ao contrário do que pensam alguns brasileiros,  os cubanos não odeiam os EUA (e até teriam motivos para isso), eles apenas não concordam com a política imperialista que tal país exerce, sabendo separar o povo do governo, como mencionado, Cuba é dialética e demasiadamente interessante, quando não curiosa.

Ainda nestes primeiros dias, fomos almoçar em um restaurante, fiquei surpreso com os baixos preços no cardápio, o prato mais caro custava 60 pesos de moeda nacional, isso equivale à R$ 6,00 um prato de macarrão à napolitana (com queijo e presunto) custava 10 pesos (R$ 1,00); as sobremesas 5 pesos (R$ 0,50); suco natural de frutas 2 pesos (R$ 0,20). Lembrei daquela pior direita brasileira, mentirosa, que afirma não haver comida em Cuba, afirma que os cubanos morrem de fome enquanto a comida é racionalizada, quanta mentira e desonestidade...

No dia seguinte, assistimos gratuitamente o show do Silvio Rodriguez na Plaza San Francisco em Havana Vieja, mais uma vez me surpreendi, os cubanos são muito tranquilos em apresentações, o som dos auto-falantes não precisava ser extremamente alto, pois não há histeria do público, em frente ao palco, havia idosos e crianças, mesmo cheio, não havia tumulto. O show foi maravilhoso, o Silvio é um artista discreto, sobe no palco, toca e canta suas canções, agradece e se vai. Vê-lo cantar, me veio em mente uma de suas entrevistas, em que falava sobre o fato de não ter conseguido o visto para se apresentar nos Estados Unidos, na ocasião o entrevistador lhe preguntou: - E se você tivesse fugido de barco para os EUA? Silvio respondeu: - Iriam me receber e me exibir como troféu... (fonte: http://www.cubadebate.cu/especiales/2009/05/18/silvio-rodriguez-fidel-figura-historica/)


No quarto dia, iniciou-se a Brigada de Solidariedade Sul-Americana na região de Caimito, na província de Artemisa, éramos 80 brasileiros, 58 Argentinos, 57 Chilenos e 6 Uruguaios, assistimos conferências, trabalhamos no campo e em construção civil, visitamos lugares históricos, museus, escolas, policlínicos, etc. Conversando com os camaradas brigadistas de outros países, percebi que a imprensa que mente e manipula as informações sobre Cuba - reféns de seus patrocinadores e do mercado, que aliena a massa e constrói uma imagem negativa sobre a ilha - não é uma peculiaridade da mídia brasileira. Essa troca cultural foi fantástica, evidenciando que lutamos pelos mesmos ideais, contra os mesmos problemas, contra os mesmos inimigos, deixando claro também que a esquerda tão plural e segregada, é uma característica da esquerda Brasileira, entre os Argentinos e Uruguaios, há uma certa união, que ao meu ver, é essencial para desfazer a hegemonia imperialista. Um pouco mais de Gramsci...

Nos dias de trabalho voluntário, evidenciou-se as dificuldades consequentes do covarde bloqueio imposto pelos Estados Unidos contra Cuba, a impossibilidade de importar máquinas agrícolas ou mesmo máquinas para a construção civil, faz com que certos trabalhos práticos, tornem-se desgastantes mão de obra braçal para os Cubanos, por exemplo, em Playa Girón, onde abrimos uma vala em uma rua para a passagem de encanamento de água, a falta de uma escavadeira, nos obrigou a abrir manualmente tal vala em uma terra dura, assentada por carros, um trabalho que uma maquina levaria minutos para fazer.

No último dia em Playa Girón, pude conhecer a medicina cubana pessoalmente, como paciente, acredito que a mudança na alimentação, não me fez bem, e precisei procurar um médico, fui atendido imediatamente, o médico, muito atencioso, se mostrou preocupado, me atendeu e forneceu um medicamento ali mesmo, um remédio para aliviar a dor e um pó solúvel de soro fisiológico para regular o estômago, no mesmo dia a noite eu já estava bem, avistei o médico que me atendeu e de longe o mesmo me acenou com a mão, um sinal de positivo, com o mesmo gesto respondi que já estava bem e lhe agradeci, refleti: será que um médico brasileiro da rede pública lembraria o rosto de um paciente depois de um dia inteiro de trabalho atendendo à centenas de pacientes?

Após 14 dias de brigada, fiquei hospedado na casa de uma simpática família cubana em Havana, vivem naquela casa uma garotinha estudante, seus pais que trabalham juntos na empresa de comunicação de Cuba, e sua avó aposentada, apesar de se tratar de um apartamento de construção antiga e um pouco judiada pelo tempo, o interior da casa é muito bonito e aconchegante, na sala uma TV de LCD e um vídeo-game Xbox 360 da Microsoft, no banheiro uma banheira, além da cozinha uma copa e 3 quartos.

Diferente das brigadas - onde eu convivia com outros brasileiros e outros sul-americanos - passei estes últimos dias somente com Cubanos, conhecendo melhor a realidade de Cuba, andei muito pelas ruas, conversando com o povo, alguns se posicionavam contra o governo de Fidel e Raul, mas ainda assim se diziam socialistas, outros poucos se posicionavam contra o socialismo, mas quando falavam do capitalismo, demonstravam que só o conhecia pela TV, a fundamentação do argumento para justificar seu posicionamento, baseava-se em uma utopia capitalista, onde todos tinham suas casas próprias, carrões particulares, tecnologia de ponta, riqueza, como é demonstrado nos filmes hoolywoodianos, filmes estes que eles constantemente assistem, bem como as novelas brasileiras que são transmitidas em Cuba (os Cubanos adoram as novelas brasileiras), novelas que vendem a imagem da família brasileira reunida para o café da manhã, com a mesa bem farta, onde todos são felizes vivendo em um mundo perfeito com um final feliz garantido. Um Cubano me perguntou para onde vão os moradores de rua quando chove, demonstrando o total desconhecimento da miséria que vimos nas ruas dos países capitalistas. Pois se há algo que posso garantir, é que nos 21 dias em que estive na ilha, nas 5 regiões distintas que visitei, não vi uma única pessoa morando nas ruas. Pois uma moradia para residir é um direito garantido para todos, e funciona.

Conversei com uma senhora que vendia doces na porta de um mercado na região de Artemisa, ela me dizia que não gosta de Cuba e que não vive bem, um rapaz que passava por ali gritou "Esta senhora não sabe o que diz", fui conversar com ele, me disse que esteve em missão de solidariedade em outros países, vivenciou pessoalmente a situação destes lugares, e afirmou categoricamente que Cuba é um bom país para viver.

A maioria dos Cubanos chamam de traidores aqueles que se graduam gratuitamente em Cuba e depois vão ganhar dinheiro no exterior, pois é muito fácil explorar as gratuidades que o governo Cubano garante para o estudo, saúde e moradia, para depois ir ganhar dinheiro em outros países, pensando somente individualmente, nada republicano, não ajudando a economia Cubana que luta dia-a-dia para continuar independente do imperialismo.

O ápice desta experiência em Cuba, foi conhecer René Gonzalez, um dos 5 heróis cubanos que cumpriu 15 anos de prisão nos EUA acusado injustamente enquanto exercia sua função anti-terrorista, lembrando que Cuba foi o país que mais sofreu ataques terroristas no século XXI, Fidel Castro foi vítima de mais de 600 atentados. René exaltou a importância das manifestações que ajudam a divulgar a história dos 5 heróis, pois muitos norte-americanos não tem conhecimento deste fato, ou tem um conhecimento distorcido.

Um trabalhador de um requintado restaurante privado, em que o dono do estabelecimento já viajou pela Europa a passeio, tinha uma opinião diferente porém interessante sobre seu país, ele dizia que é a favor do socialismo, que é a favor do governo de Fidel e Raul, porém dizia que Cuba é um socialismo que se assemelha ao capitalismo, pois quem estuda tem uma garantia de um bom emprego, este recepcionista por exemplo, aprendeu idiomas diferentes, recepciona os clientes e me disse ganhar bem, afirmou que os cubanos que mais reclamam do governo, são aqueles que querem viver a custa do mesmo, sem estudar, trabalhar ou produzir. Me veio em mente a meritocracia que está no argumento da direita ao defender o capitalismo, ela existe em Cuba, porém uma vez que o governo garante gratuitamente acesso democrático à educação, saúde e moradia; a questão da herança é marcada por uma triunfante reforma agrária: a meritocracia Cubana se faz justa.

Algo que não posso deixar de relatar, é a livreta: uma caderneta com itens de alimentação e higiene que permite aos Cubanos, a aquisição destes produtos gratuitamente nos mercados estatais, uma senhora me contou que no inicio da Revolução, tais produtos supria as necessidades de um mês, porém, muitos Cubanos deixaram de estudar e trabalhar, pois uma vez que tinham tudo que se faz necessário para sobreviver garantido gratuitamente, o estudo e o trabalho eram deixados de lado, a medida que o governo adotou, foi diminuir os produtos da livreta pela metade, garantindo alimentação e higiene por 15 dias de um mês, porém, o governo garante emprego e acesso a educação para todos, assim os cubanos podem comprar nos mercados aquilo que a livreta não oferecer.

Em relação às universidades, há um processo seletivo para o ingresso, ao concluir a escola, o aluno escolhe cinco opções de cursos e presta o vestibular, se ele não atingir a nota de corte de nenhuma das cinco opções, a universidade encaminha este aluno para os cursos menos requisitados, esta medida se fez necessária, pois o país enfrenta uma complexidade, ao tornar a educação gratuita e democrática, as pessoas estão se formando em medicina, engenharia, arquitetura, e, as profissões como carpinteiro, por exemplo, estão escassas.

É importante considerarmos as dificuldades naturais da ilha, digo naturais no sentido mais lato possível, a natureza não foi amiga de Cuba, além da falta de petróleo, as águas dos lençóis freáticos de Cuba, contém muito sódio, necessitando de um processo complicado para torna-la potável, tal questão não se relaciona ao socialismo, pois estas dificuldades naturais independem do sistema político. A moradora da casa onde fiquei hospedado, fervia, filtrava e coava a água antes de leva-la a geladeira para torna-la consumível.

No dia da Marcha das Tochas (evento onde estavam presentes Nicolás Maduro, Evo Morales, Pepe Mujica, e o presidente de Cuba Raul Castro na porta da Universidad de La Habana) havia um telão onde estava sendo reproduzidos clipes de músicas nacionais e internacionais, entre eles foi reproduzido um clipe de RAP porto-riquenho do grupo Calle 13, este grupo tem músicas que apontam problemas sociais e políticos, podendo ser considerado subversivo em um país sob ditadura, demonstrando que há liberdade de expressão e cultural em Cuba.



Conclusão

Cuba é um país marcado por avanços e contradições, ter ido para ilha, afirmou o que eu imaginava: há pobreza em Cuba, mas não há miséria, não há injustiças sociais, as ruas são seguras, a policia não tem mentalidade fascista, ela está ali para proteger a todos. Os cubanos são muito acolhedores. As dificuldades do país são em grande parte por culpa do bloqueio imposto pelos EUA, a reforma do porto Mariel promovida pelo atual governo brasileiro, ajudará muito Cuba com as importações, pois a profundidade deste porto, é bem maior do que a do porto de Havana, isso facilitará para que Cuba receba grandes navios cargueiros. O sistema não é mercadológico, e isso faz com que a ilha tenha suas prioridades diferentes das prioridades dos países capitalistas, pois o crescimento humano é mais importante do que o crescimento dos lucros, um exemplo disso, é o preço dos livros: nas livrarias, o livro mais caro que eu encontrei, custava 25 pesos (R$ 2,50), enquanto uma cerveja em lata custa 30 pesos (R$ 3,00) a passagem de ônibus, custa 0,40 pesos (R$ 0.04). Cuba é hoje a esperança de qualquer pessoa que se incomoda ao ver tanta injustiça social pelo mundo, se algumas pessoas reduzem o socialismo de Cuba como um "romantismo que deu certo", eu diria que mais do que isso, Cuba é um romantismo que deve servir de inspiração aos românticos para que lutem por um mundo melhor, um mundo socialista.

*Rafael da Silva Oliveira, 25 anos, é estudante do 2 ano de Filosofia e professor da rede pública do Estado de São Paulo.


Fonte: http://www.opensadordaaldeia.blogspot.com.br/2014/03/o-que-universidade-nao-ensina-estudante.html 

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