quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Texto de Urariano Mota sobre os exames médicos no Brasil.

Sanidade total à brasileira

Há duas semanas, precisei de um atestado de sanidade física e mental. Quem me conhece sabe que esse atestado, aplicado ao indivíduo que sou, ou é desonesto ou é impossível. Mas que fazer, a gente precisa, e necessidade não tem lógica, tem é carência enorme à procura de satisfação. Eu buscava, portanto, um Atestado de Sanidade Física e Mental. Assim em maiúsculas fica até mais digno, e mais crível. Por isso abro o catálogo telefônico e destaco os números de telefone dos centros médicos, Centro Médico, devo dizer, para maior idoneidade dos Centros. Ligo, e começa o nonsense.
– Roseli…
– É do Centro Médico Ulisses Eulâmpio?
– Sim, Roseli, às suas ordens.
– É do Centro Médico?
– Sim… um momento.
E depois de 3 minutos de intervalo, por vingança, suponho, porque eu não soube logo que o Centro Médico Ulisses Eulâmpio e Roseli eram uma só e só uma pessoa:
– Sim… fale.
– Vocês fornecem atestado de sanidade física e mental?
– Atestado de…
– Sanidade Física e Mental.
– Só o Físico.
– E o Mental?
– O senhor tem que ir a um médico de doença mental.
Antes que eu agradeça, a recepcionista que é uma instituição desliga. Ligo para outros, outros Centros Médicos, outras Centrais de Atendimento de Saúde, até para Hospitais. Sempre a mesma conversa. “Só o físico atestamos, o senhor, se quiser, que vá a um psiquiatra pegar o outro”. E o outro, bem sei, por mais características certas e inabaláveis de esquizofrenia, o outro deve ser eu. Que não vai correr esse risco. Por isso este, aqui, volta a um décimo Centro Médico de Saúde.
– Escute, vocês não têm médico clínico geral?
– Só temos especialistas.
– E não têm dois especialistas, um físico e um mental, no Centro?
– O senhor deveria ir a um Hospital Psiquiátrico.
Desligam. Mas o louco, que bem sabe estar no Brasil, terra de todas as possibilidades possíveis e imagináveis, não desiste. E lhe dizem, na vigésima primeira tentativa.
– Centro de Medicina do Trabalhador.
– Vocês fornecem atestado de sanidade física e mental?
– Sim, fornecemos.
– Atestado de Sanidade Física… e Mental?!
– Sim, fornecemos.
– Certo… (E repito, para maior certeza)… Atestado-de- sanidade- física- e- mental.
– Um momento…
E por vingança, suponho, deixa-me a esperar uns bons 5 minutos, porque não ouvi bem, e se ouvi deveria ter acreditado que ali se fornecia Atestado de Sanidade Física e Mental, sem dúvida, idiota.
– Centro de Medicina do Trabalhador…
Imagino, porque estou em casa ainda, imagino que o Centro de Medicina do Trabalhador é um complexo industrial-médico cheio de canos, retortas e de portas, e laboratórios, e corredores compridíssimos, cheios de especialistas de todas as especialidades, se assim podemos dizer. Um lugar onde entramos em uma porta e saímos em outra, de exames de raios X a laboratórios de análises, de laboratórios a máquinas de eletrochoques, até atingir as perguntas cruciais dos psiquiatras, que nos estudam e olham como se fossem a Miss Marple de Agatha Christie. Imaginação vulgar, estúpida e insípida, já veem.
– Me diga uma coisa: demora muito pra pegar esse atestado?
– Não, é ordem de chegada.
– Tem muita gente aí?
– Centro de Saúde do Trabalhador… um momento. Agora, só uns quinze.
– Vocês atendem por algum plano de saúde?
– Centro de Saúde do Trabalhador… O pagamento é na hora.
– E quanto é?
– Trinta reais.
Desta vez sou eu que desligo. Trinta reais! Isso ou é uma absoluta anarquia, uma grande zona, ou deve ter algum subsídio para, depois do check-up, diagnósticos, especialistas e consultas, atingir um preço tão barato. E me mando, necessitado e incrédulo que sou, para o centro do Recife.
Ó homem de pouca fé, ainda que vivas em um país cafeeiro, acredites, o Centro de Medicina do Trabalhador existe, e não é uma absoluta zona. É um lugar com aparência decente (“como deve ter todo prostíbulo que funcione”, um diabo me diz). Mas não. Ali entro em uma sala, com duas atendentes, que me parecem moças da maior seriedade. E por isso pergunto, com um pé atrás, em um intervalo de suas respostas “Centro de Medicina do Trabalhador” no telefone:
– Atestado de Sanidade Física e Mental, é aqui?
– Aguarde a sua vez – ela me responde, enquanto me entrega um papelzinho numerado, onde leio, “ficha 27”.
Olho ao redor. À minha frente, jovens recém-saídos da adolescência, e um deles sem dúvida é um rapaz típico de Pernambuco. Veste uma camisa negra, com as palavras, digo, com o anúncio “Quick Silver”. Palavras em inglês, nas camisas, para muitos jovens do Recife têm um valor estético, porque as veem com o mesmo significado de um ideograma chinês. Ao lado, um cidadão gordo, um quase velho, diria, se eu não estivesse em idade próxima à dele. Um inválido, eu acrescentaria, se nos últimos tempos eu não estivesse bem solidário para com os inválidos. Um homem, enfim, completo, que não passará com a sua imensa barriga em qualquer check-up. Ele sequer passa na abertura da cadeira, e por isso se põe um pouco de lado, a subtrair uma parte do largo traseiro no assento menor. Veste uma camisa bege, e percebo que outros também se vestem como ele, é uma farda, e todos eles possuem uma fita azul no pescoço, que desce, a fita, para um crachá, que ocultam no bolso, onde está escrito “Tribunal de Justiça de Pernambuco”. Ah, bom, então isto aqui é sério, jamais será um prostíbulo, falo comigo para o meu outro. Seis funcionários da justiça, chego a contar. Da Justiça, corrijo. Seis honrados servidores da Justiça de Pernambuco à espera do seu Atestado de Sanidade Física e Mental. Ó homem de pouca fé, o negócio, digo, o atendimento médico é garantido pelo órgão máximo das leis do Estado. Por isso, espero em paz e silêncio, para não descansar em paz. Assim manda o bom senso.
Abre-se uma porta. Sai uma senhora, jovem, com uma bata branca. É médica, me digo. Porque os médicos usam bata branca. Mas não só: a jovem moça que sai tem um certo ar de confiança, da mais certa e certeira impunidade. Esse ar dos maus médicos, devo restringir, para viver sem a sua ameaça. E me calo, sob a proteção dos funcionários do estado. A jovem passa, volta e se fecha em uma sala, misteriosa. A senhorita da recepção me chama. Enquanto preenche uma ficha, que deve ser a minha, pergunta:
– Altura?
– Um metro e setenta. (Quis dizer um metro e oitenta e cinco, mas por surto de consciência reduzi quinze centímetros)
– Peso?
– Setenta quilos.
– Aguarde.
Depois que me sento, descubro que por simetria informei meu peso em concordância emagrecedora com a minha altura. Um excesso de estética me fez descer o peso em vinte e poucos quilos. Mas é como se eu os tivesse, me digo. Mentalmente, sou um homem esbelto. No ideal em que me vejo, tenho um metro e oitenta e cinco de altura e peso setenta quilos. Belo melhor não há.
Eis então que chega a minha vez, e uma porta se abre para o meu primeiro exame de Atestado de Sanidade Física e Mental. O médico que me atende, devo dizer, o médico na frente do qual eu me assento, tem os olhos fitos na minha ficha estética. Ele não me olha. Coitado, compreendo. A seu lado possui uma pasta grande, aberta, cheia de fichas, e um papel com quadrinhos, que imagino ser um mapa estatístico, dos seus atendimentos na manhã. Quantos? Sessenta, noventa, cento e vinte? Sem me olhar, sem me ver, pergunta o pobre homem:
– Alguma doença?
– Não.
– Já fez alguma cirurgia?
– Sim…
O seu rosto ganha um ar de enfado, de aborrecida contrariedade. E sem me perguntar qual cirurgia e a razão de ter passado por bisturi:
– Mas tudo bem, não é?
– Sim, tudo bem…
– Fuma bebe drogas tóxicos algum vício, o braço.
Estendo-lhe o direito, a pensar que ele vai procurar, com percuciência, algum sinal de picada, marca ou tatuagem. Engano. Ata-me um tecido, ágil, pelo que sinto, na altura do antebraço, e com dois apertos em uma bola escura olha rápido o ponteiro em um medidor.
– Pode ir.
Confesso que lhe estendi a mão para um cumprimento, mas o pobre homem não pôde corresponder, tão pesada era sua tarefa de formar novos quadrinhos de atendimento.
 – O próximo.
Na recepção, a gentil e decente moça me entrega um papel já assinado por um médico, que deve ser o mesmo na frente do qual eu transitei. Entre o exame e o atestado há uma velocidade mais rápida que a da luz. Saio à rua, quase corro, com medo que a recepcionista se arrependa e me chame de volta. Leio e releio o documento. Parece mentira, mas os meus olhos não mentem: “Declaro, para os devidos fins, que o portador se encontra em perfeito gozo de saúde física e mental”. Mas que belo, que bela é a nossa organização física, mental e declaratória. Jamais poderia imaginar que por trinta reais eu seria um homem em pleno gozo de saúde. E magro, belo e feliz para os devidos fins, que espero longínquos. 
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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife(Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

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