domingo, 11 de janeiro de 2015

Tolerância é o direito de considerar ridículo o que o outro considera sagrado. Pensando melhor, também "Je suis Charlie", afinal, numa democracia, não é a liberdade de expressão que tem de se adaptar aos dogmas da fé religiosa


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por Paulo Jonas de Lima Piva

A precipitação, alertavam os velhos céticos, é um dos defeitos comprometedores do pensamento. Ela pode levar o indivíduo a sentenças morais equivocadas, a avaliações preconceituosas, enfim, a julgamentos injustos. Em tempos de internet, em que a velocidade é um imperativo, essa imprudência toma conta das redes sociais. Quase todo mundo tem uma opinião prontinha, irrefletida, na ponta da língua, sobre qualquer assunto, por mais que não se entenda nada a respeito. Implacáveis e exdrúxulas na maioria das vezes, essas opiniões a toque de caixa em nada contribuem para o esclarecimento das polêmicas em pauta. E quando percebemos já é tarde, também nos pegamos cometendo esse vício.

Confesso que fui precipitado quanto ao episódio do atentado terrorista à revista francesa Charlie Hebdo. Talvez por preguiça deixei me levar pela opinião de Lelê Teles expressa no seu artigo Je ne suis pas Charlie, a qual condena a contundência e a obsessão com que os chargistas da publicação atacavam o islamismo. Para Lelê Teles, os ataques insuflavam mais o desejo de vingança dos fanáticos terroristas do que esvaziavam a credibilidade do islamismo. Nesse sentido, a barbárie ocorrida na civilizada Paris já era previsível e seus desdobramentos serão catastróficos para a comunidade islâmica da Europa. Portanto, a revista teria errado gravemente ao ser tão agressiva e insistente na ridicularização do islamismo. Em outros termos, segundo Lelê Teles, a revista, de algum modo, extrapolou na liberdade de expressão.

Cheguei a pensar como Lelê Teles, não pela revista ter extrapolado na sua liberdade de expressão, mas por ter enfatizado em seu humor ácido o islamismo e não todas as religiões por igual. Agora com mais calma e menos preguiça penso um pouco diferente: o fato da revista não ter tratado com o mesmo humor desqualificador todas as religiões não é razão para eu não engrossar as fileiras do movimento "je suis Charlie", afinal, estar do lado de Charlie nesse contexto é estar do lado da luzes contra as trevas. Portanto, "Je suis Charlie aussi".

Qual é a medida?

Qual seria a medida da liberdade de expressão? A apologia à violência, à intolerância e à discriminação sociais, poderíamos responder. Racismo, violência contra a mulher, homofobia, xenofobia, poderíamos especificar. Em contrapartida, criticar uma doutrina, mostrar o absurdo de explicações e crenças, zombar de dogmas sem apelar para a violência, para a intolerância e para a discriminação, não me parece abuso de nenhum tipo. Foi o que fizeram os chargistas assassinados.

Mas zombar da fé religiosa não seria um desrespeito inaceitável para uma sociedade que tem na tolerância um dos seus principais valores?

Uma coisa é fé religiosa, outra coisa são as doutrinas, livros, estórias e personagens que alimentam essa fé. Tal distinção parece importante para entendermos o que é tolerância.

Posso perfeitamente reconhecer e ser solidário com o direito de fé e expressão religiosa e ao mesmo tempo discordar radicalmente e expressar com vigor minha discordância da doutrina, dos livros e personagens dessa fé, seja pelo humor, seja de forma carrancuda. O ataque nesse caso é direcionado não ao direito do crente de ter e expressar a sua fé religiosa, mas ao conteúdo e ao fundamento teórico dessa fé. O mesmo é válido quando a crença em questão é de outra natureza. Numa democracia, cabe ao crente contrariado nos seus dogmas aceitar essa contrariedade, por mais violenta que ela seja na sua argumentação e humor, afinal, estamos no âmbito da teorização e do debate de ideias. Trata-se de um etos da democracia.

E por que tanto zelo assim com a fé religiosa e não com as convicções político-ideológicas ou com as paixões futebolísticas, por exemplo? Por que esse apelo implícito de privilégio de imunidade à religião? Por que tratá-la como um vaso frágil de cristal que precisa a todo custo ser protegido? Por que a política seria um assunto menos delicado do que a religião? Mais: por que alguém que considera ridículo o que se considera sagrado deve ser obrigado a tratar como sagrado o que ele considera ridículo? Por que é permitido ridicularizar personalidades, programas e partidos políticos e não seitas religiosas com seus escritos pretensamente sagrados e seus messias? Por que essa desvalorização de uma esfera da vida e ao mesmo tempo uma hipervalorização da outra? Qual o critério da sua pretensa superioridade? Enfim, por que a religião mereceria mais respeito do que a política ou os direitos dos animais? Lembrando, grande parte da humanidade não vive mais o teocentrismo, sua vida institucional é laica e os seus regimes não são mais teocráticos. Portanto, tal privilégio de imunidade com a fé religiosa ou com a religião é injustificável e injusto em tempos de secularização da vida pública.

Tolerância

Mas não teria a revista francesa cometido a incivilidade da intolerância religiosa?

O que é tolerância religiosa? É impedir que o outro critique e tente desmitificar minha crença? É portanto a paralisia da reflexão, a estagnação da problematização em nome do respeito à fé do crente? Ora, o alvo da crítica é a ideia, a doutrina, a narrativa, o dogma, a tese, o símbolo, o argumento, a explicação e não o direito do crente de ter fé naquela narrativa, naquela explicação, naquela doutrina que está sendo atacada. Essa distinção é crucial, insistamos.

E se considero Cristo apenas um fanático religioso delirante como muitos outros de uma época cheia de penúrias, ou até mesmo um charlatão que ludibriou pessoas sofridas e desesperadas, como pensava e escreveu, por exemplo, o filósofo iluminista francês Jean Meslier (1664-1729), devo ser por isso fuzilado por cristãos porque sua doutrina foi desqualificada? Não tenho direito não só de pensar assim, mas também de expressar em charges essa crença? Enfim, uma coisa é desrespeitar uma doutrina considerando-a absurda e risível, outra é desrespeitar o direito do religioso de ter fé nessa doutrina e expressar o contrário do que penso. E se ele tem o direito de ter fé e expressá-la, eu também tenho o direito a não ter fé e do mesmo jeito expressá-la. Em suma, tolerância, a meu ver, é o direito de considerar ridículo o que o outro considera sagrado, respeitando o direito desse outro de acreditar e de expressar sua fé naquilo que eu considero e verbalizo como ridículo. O mesmo é válido para ele.

Nesse sentido, por mais ácidos que tenham sido os chargistas franceses no seu humor desmistificador, aderir à tese de que eles ultrapassaram os limites da liberdade de expressão é uma posição temerária para a própria liberdade de expressão, é fazer o jogo dos religiosos que estão tentando manipular a chacina para arrefecer as críticas às suas religiões. Para que a liberdade de expressão seja consolidada como princípio fundamental da civilização é preciso não que as pessoas limitem sua liberdade de expressão, mas que as pessoas atingidas em seus dogmas aprendam a lidar e a conviver com outras perspectivas diferentes da sua, por mais indigestas que estas sejam.

Fonte:http://opensadordaaldeia.blogspot.com.br/2015/01/tolerancia-e-o-direito-de-considerar.html 

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