Presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo \"Rubens Paiva\", Adriano Diogo lembra como foi arrastado por homens à paisana, algemado sem roupa e torturado a caminho da prisão.
Por Carta Capital
No dia 30 de março de 1964, eu tinha acabado de fazer 15 anos. O rádio anunciava plantões dia e noite. Eu sabia que a situação era péssima. Depois do comício da Central do Brasil, que ouvi na íntegra a fala do presidente João Goulart, a perseguição começou de uma forma impressionante, amedrontando a todos. Eu morava na Mooca, um bairro de italianos e espanhóis operários. Todos os dias, atravessava as fábricas para chegar à escola. Estudava no Colégio Estadual Antônio Firmino de Proença, onde também participava do Grêmio estudantil. O diretor da Escola, o coronel Alfredo Gomes, não me via com bons olhos. E o professor de geografia, coronel Silvio Correia de Andrade, também chefe da Polícia Federal em São Paulo, não me suportava. Desde que participei da organização dos jogos Pan Americanos, em agosto de 1963, comecei a ser perseguido.
No dia do Golpe, na terça-feira 31 de Março, eu estava indo de ônibus para a escola quando o mesmo foi interceptado. Paramos na Avenida Presidente Wilson, a avenida das fábricas, da Arno, das grandes metalúrgicas. Descemos ali e continuei a pé por quase meia hora até o meu colégio, que ficava próximo ao Parque Dom Pedro. O que eu vi foi uma barbaridade, gente sendo presa aos montões. Eram cerca de seis horas da manhã. As pessoas começaram a ser presas na porta de seus trabalhos. Quando cheguei na escola, ela estava fechada. Então me juntei a outros colegas e fomos até o Sindicato dos Metalúrgicos, na Rua do Carmo, para ver como as coisas estavam. O sindicato havia sido tomado, tudo totalmente cercado. Foi aí que entendemos a gravidade do momento. No dia seguinte, já não pude mais entrar na escola. Eu havia sido suspenso por 15 dias e, depois, fui expulso, sem saber como explicar para a minha mãe. Ela não se conformava com a notícia. Para o meu pai era a maior vergonha de sua vida.
Meu pai tinha um pequeno restaurante próximo à Praça da República. No local, era comum a freqüência de diversas pessoas, mas aqui me lembro fortemente do pessoal de direita da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Nas proximidades havia também como polo da direita o conglomerado de jornais de Assis Chateaubriand. Na porta dos Diários dos Associados, havia a campanha “Ouro Para o Bem do Brasil”, na qual faziam uma espécie de pedágio, com as pessoas doando joias, alianças, anéis e brincos para o governo lutar contra o comunismo e pagar a dívida externa. Era esse o clima. Enquanto isso, quando fui transferido de escola, comecei a estudar à noite e trabalhar durante o dia. Mesmo assim, resolvi tirar um tempo e ir saber na outra escola o motivo da minha expulsão. Eu já sabia que dois professores, coronéis da polícia, não gostavam de mim. Minha participação nas atividades esportivas, tudo virou álibi contra mim. Minha ficha já estava suja e eu só tinha 15 anos.
Nas semanas subsequentes ao golpe, as pessoas continuaram sendo presas em casa sem formação de culpa. Eu não sabia como justificar para minha mãe e pai o motivo de eu ter sido expulso da escola e de ser considerado subversivo, já que nem eu sabia direito o significado dessa palavra. Tive que seguir e aprender sozinho o caminho das pedras. Nunca mais parei. Eu era apenas um jovem estudioso que gostava de política e me interessava pela independência do Brasil. Dentro do golpe, sofremos outro golpe, que foi o Ato Institucional nº 5 de 1968. Neste período, eu estava saindo do colegial e entrando na Universidade. Já estava com 19 anos e passei praticamente o tempo todo na Rua Maria Antônia. Eu organizava sessões de teatro e cinema e fazia cursinho pré-vestibular.
Os grupos que se encontravam na Maria Antonia decidiram apoiar a greve que estava sendo preparada em Osasco. Recordo-me que pelo menos mil estudantes foram para a preparação com antecedência de 15 dias. Nas casas, nas estações de trem, nas ruas, de bairro em bairro, fizemos ações distribuindo panfletos para conversar com a população, inclusive com as famílias dos operários. Muitas vezes tivemos que dormir no sindicato, pois passávamos horas conversando com os trabalhadores para entender o que era greve. Quando chegou o grande dia, ajudamos a organizar piquetes nas portas das fábricas. A greve, que ficou conhecida como Greve da Cobrasma, foi deflagrada no dia 16 de julho de 1968. Diversas fábricas aderiram e assumimos o papel de sair pela cidade por uma campanha de solidariedade nas ruas, pois houve enorme repressão aos trabalhadores em greve. Muitos ficaram presos e foram brutalmente torturados no Dops de São Paulo. Em 1969, consegui ingressar no curso de Geologia da USP. Eu não fazia ideia de que lá era o grande núcleo de resistência da dissidência do partido comunista, que depois virou a Ação Libertadora Nacional (ALN). Entre tantos amigos, lá estavam os companheiros Alexandre Vannucchi Leme e Ronaldo Mouth Queiroz. Com eles dividi grandes momentos nas atividades do curso de Geologia e no nosso inevitável envolvimento na luta contra a Ditadura instalada nesse país.
Acho que naquele momento não havia outra escolha. Na USP, assumi o papel de envolver pessoas nas atividades culturais que envolviam conscientização política. Andava pelos diversos centros acadêmicos, inclusive em outras faculdades, e fazia a pontes com nossos grandes grupos de teatro. Ajudei a organizar o Teatro Jornal. Na época, os jornais estavam sob censura e conseguíamos ter acesso ao que não era publicado e difundíamos nas peças teatrais as informações. Muitos companheiros estavam sendo presos e desaparecendo e a ditadura fazia isso, mas impedia que isso fosse sabido. Por isso, mesmo esse trabalho cultural de mobilizar pessoas para acompanhar as atividades era arriscado.
Aos poucos, muitas pessoas, inclusive próximas a mim, precisaram se esconder, vivendo clandestinamente, até que muitas delas foram presas. Minha hora estava chegando e eu sequer percebia isso, tamanho era nosso envolvimento nas atividades. Eu estava preparando a recepção dos calouros junto à organização do movimento estudantil da USP em 1973. Era algo grande, espetacular. Eu cheguei a ir para Diamantina em janeiro para fazer estágio de campo, fiquei o mês todo trabalhando. Voltei para São Paulo e para mim estava tudo tranquilo. Até que estranhos sinais na minha rua indicavam uma vigília na minha casa. Eu tinha acabado de me casar, fiquei com minha mulher pensando que deveríamos fugir, chegamos a fazer as malas, mas na verdade sequer tínhamos para onde ir. Neste dia, 17 de março, um sábado, eu estava tomando banho. Sai às pressas para atender a campainha que tocava insistentemente. Era hora do almoço. Ao abrir, policiais já vieram para cima com violência, fui arrastado por homens que estavam à paisana, enquanto outros saqueavam todo o apartamento, roubando tudo que tínhamos acabado de ganhar no casamento. Pegaram minha esposa, Arlete Lopes, nos jogaram no carro, fui algemado, sem roupa e apanhando já no caminho. Eram muitos homens que estavam nesse dia e, entre eles, estava o torturador Dirceu Gravina. Fomos levados para a Rua Tutóia, nº 921, onde funcionava o DOI-Codi de São Paulo. Quando cheguei ao pátio, o major Carlos Alberto Brilhante Ustra disse para mim: “Acabo de matar aquele filho da puta do ‘Minhoca’, o Alexandre Vannucchi Leme, mandei para a vanguarda popular celestial. Morreu naquela cela, ele estrebuchou.” Tirou um revólver da gaveta a disse: “Tá vendo isso aqui? Isso aqui é um Magnum. Vou te mandar para o mesmo lugar!” Em seguida, o major comandou pessoalmente minha tortura dando ordens aos policiais que estavam ali.
Alexandre Vannucchi havia acabado de morrer na pequena sala a qual eu fui levado. Vi pessoas lavando o local, puxando com um rodo o sangue do meu amigo e a partir dali era eu que estava sofrendo torturas. Enquanto me torturavam com choques ou no pau de arara, me perguntavam sobre os pontos, sobre a ALN, sobre as armas, sobre as ações, sobre um monte de nomes que eu nem conhecia. Me perguntaram sobre o Queiroz incisivamente, por conta da sua importante hierarquia na organização. Estavam atrás dele para matar como fizeram com fizeram com o Alexandre. Foram 90 dias apanhando direto e depois jogado em uma solitária, sem a luz do dia e completamente nu. Dos nomes que perguntaram conhecia apenas o Queiroz e o Alexandre. Não sabia sobre armas e qualquer outra coisa, pois meu trabalho era no movimento estudantil. Recordo do ódio que Ustra ficou pela realização da missa de 7º dia do Alexandre. O major tirou todos nós das celas berrando contra Dom Paulo Evaristo Arns. “Aquela bicha louca”, gritava. Apanhamos ferozmente. Depois ainda fui levado para o Dops e vi o Edgar Aquino Duarte, desaparecido até hoje.
Mais de 40 anos depois, essas lembranças ainda causam arrepios e lágrimas silenciosas. Já vamos completar 50 anos do golpe e sigo lutando junto com outros companheiros na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” para que as gerações conheçam esse passado. Somente entendendo o que aconteceu poderemos promover a democracia com que sonhamos e queremos consolidar.
*Adriano Diogo é ex-preso político, foi militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). Saiu da prisão em 1975 dedicando-se à carreira política, primeiro como vereador e atualmente como deputado estadual (PT) e presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” na Alesp. Seu texto faz parte de uma série de artigos que o site de CartaCapital publica sobre os 50 anos do golpe-civil militar de 1964
Fonte: http://www.adrianodiogo.com.br/noticias/internas/id/2412
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