Conferencista do Fronteiras do Pensamento São Paulo e Santa Catarina, o filósofo francês Michel Onfray veio ao Brasil para falar sobre ateísmo, Freud e psicanálise, temas de seu livro mais polêmico: Le Crépuscule d'un Idole, l'Affabulation Freudienne
(O crepúsculo de um ídolo, a fábula freudiana), sem tradução prevista
por aqui. Lançado em 2010, o trabalho é uma crítica radical à
psicanálise e ficou meses na lista dos mais vendidos. Confira, abaixo, a
entrevista de Onfray à revista Valor Econômico.
Professor secundário durante anos, Onfray deixou o ensino público há
uma década para fundar, ao lado de 20 amigos, a Universidade Popular de
Caen, na região francesa da Normandia. Suas aulas, abertas e gratuitas,
são depois veiculadas pela rádio France Culture (www.franceculture.fr) e
podem ser acompanhadas também pela internet. "Larguei meu trabalho de
funcionário público porque tinha livros a escrever, conferências a fazer
e queria tornar a filosofia popular, como nos incitou a fazer Diderot
[1713-1784]", afirma.
Aos 53 anos, com cerca de 60 livros publicados, Onfray faz parte do
grupo de filósofos franceses mais midiáticos, conhecidos por popularizar
a filosofia e traduzidos em vários países. No Brasil, sua obra vem
sendo lançada pela editora WMF Martins Fontes - o mais recente é Os Ultras das Luzes - Contra-História da Filosofia 4.
Se os bate-bocas e críticas o acompanham por toda parte, ele também faz
questão de responder com a mesma virulência: "Sinceramente, estou me
lixando para o que os intelectuais pensam do meu trabalho".
Valor: Seus livros falam de uma temática contemporânea, que
contempla da alimentação à estética. O senhor já escreveu sobre
bioética, arte, política, história da filosofia e erotismo. Na sua
opinião, quais são os temas mais inquietantes para as pessoas nos dias
de hoje?
Michel Onfray: Tudo se resume a uma coisa só: como viver no
mundo sem ter uma bússola? Deus está morto, Marx também. O capitalismo
se comporta muito bem, o niilismo triunfa e a maioria das pessoas busca
uma ética e uma política de substituição. Depois de 1989 e a queda do
Muro de Berlim, eu proponho alternativas: o hedonismo em matéria de
moral e o anarquismo em termos políticos.
Valor: Qual é a melhor maneira de definir o senhor politicamente?
Onfray: Sou um socialista libertário, um leitor apaixonado de
Proudhon, o defensor de uma esquerda libertária, como Camus. Detesto
Marx e os marxistas. No século XX, o software marxista, repercutido via
Sartre, Althusser, Zizek, Badiou, continuou fascinado pelo terror de
1793, por Robespierre e sua guilhotina, por Saint-Just, sedento de
sangue, a pretexto da "virtude". Eles aí encontram desculpas para o
Gulag [arquipélago Gulag, conjunto de campos de trabalho forçado na
Sibéria, durante a ex-União Soviética] argumentando que os Estados
Unidos são um país de alguma forma totalitário. Detesto tanto o
liberalismo e a direita quanto essa esquerda que se protege à sombra dos
miradores. Minha esquerda é libertária. Ela se alimenta de
anarco-sindicalismo, de anarquismo municipal, de pós-anarquismo. Se você
quer me definir, sou um homem de esquerda livre. Ou um homem livre, de
esquerda.
Valor: Com frequência seus textos falam sobre sua vida, sobre a
pobreza e a miséria afetiva da infância. Isso ainda o incomoda? Como
tudo isso determinou seu trabalho?
Onfray: Nietzsche revolucionou a filosofia ao escrever que ela
não era nada mais do que a autobiografia, a confissão de seu autor. A
filosofia institucional passa, evidentemente, essa verdade sob silêncio e
persiste a declamar que o filósofo é um cérebro sem corpo, que alimenta
um comércio desinteressado com ideias puras! Eu, de minha parte, mostro
como a ideia genial de Nietzsche é uma verdade epistemológica, tomando
como exemplo o que conheço melhor: minha vida.
Valor: Mas a filosofia pode curar ou apenas ajuda a suportar a angústia?
Onfray: As duas coisas. Tudo depende da filosofia. Há
filosofias diversas e múltiplas. Assim como há filósofos do
conhecimento, da descrição pura, da estética etc. Alguns pensadores
ajudam a viver, a bem viver, a melhor viver. Depois de 60 livros eu
tento inscrever meu trabalho nessa linhagem. Não podemos viver de acordo
com a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, ou o Ser e Tempo, de Heidegger. Mas podemos viver conforme as Cartas a Lucilius, de Sêneca, os Ensaios, de Montaigne, ou Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche.
Valor: Um dos mais conhecidos neurocientistas brasileiros,
Miguel Nicolelis, diz que atualmente a humanidade é dominada por três
esquizofrênicos que ouviam vozes: Jesus Cristo, Maomé e Abraão. O que
pensa a esse respeito?
Onfray: Não conheço o trabalho desse homem valioso, mas peço
ao céu (que é vazio de deuses...) para que ele fale francês (é uma pena
que eu não fale sua bela língua). Assim eu poderia convidá-lo para me
acompanhar ao restaurante, onde festejaremos essa comunhão de espírito.
Valor: O senhor fundou a Universidade Popular de Caen para dar
aulas abertas a todos e, depois, a Universidade Popular do Gosto, em
Argentan. No que ela consiste e que resultados obteve?
Onfray: Eu propus celebrar os cinco sentidos num lugar que é
um "jardim" de reinserção social. Sob uma tenda, organizo jornadas
consagradas a escritores, filósofos e nós celebramos com conferências,
concertos, demonstrações culinárias e refeições festivas. Os cinco
sentidos são mobilizados para construir uma conexão social hedonista. A
última sessão consagrada a Camus [tema do mais recente livro de Onfray: A ordem libertária - a vida filosófica de Albert Camus], juntou 600 pessoas e nós servimos 400 refeições em Argentan, cidade onde nasci, onde moro e onde organizo as jornadas.
Valor: Como analisa a moda da gastronomia que corre o mundo nos últimos anos? Será mesmo possível democratizá-la?
Onfray: Existe, provavelmente, uma moda que ilustra o triunfo
do narcisismo contemporâneo. Ela parte da suposição de que nós podemos
nos dar prazer, celebrar nosso corpo e que conseguimos nos bastar a nós
mesmos. Mas a gastronomia pode também ser popular, celebrar o convívio,
ser festiva, alegre e compartilhada. Não consigo imaginar a gastronomia
como uma ocasião de nos separarmos uns dos outros num exercício
narcísico e ególatra - vejo-a como um momento de festa generalizada. A
mesa é uma metáfora política: diz-me o que comes e eu te direi quem
és... Charles Fourier, um socialista utópico do século XIX, é um modelo
para mim.
Valor: Por que o senhor construiu sua carreira fora de Paris?
Onfray: Paris é o lugar de todos os compromissos, de todos os
poderes, e, portanto, o lugar de todas as infâmias. Os "Onfray" são
descendentes dos vikings que chegaram à Normandia em meados do século X.
Meus ancestrais estão nessa região da França há um milênio. Eu nasci,
vivi, escrevi meus livros e serei enterrado em Argentan. Não há nada em
Paris que me faça participar de seus bacanais de paixões tristes.
Valor: Como avalia a crise europeia? Que futuro espera o continente?
Onfray: A Europa morreu desde que os burocratas assim
tentaram, depois da Segunda Guerra. Já a Primeira Guerra a tinha
sangrado em vão. A Europa nasceu com a conversão do imperador
Constantino ao cristianismo, no começo do século IV. E começou seu
declínio quando Luis XVI foi decapitado, durante o Terror de 1793. Ela
decaiu mais ainda, depois. Já perdeu seu lugar no concerto das
civilizações planetárias e está sendo chamada a integrar o cemitério de
civilizações defuntas... O barco segue seu curso, tomemos champanhe, mas
sabendo que ele vai a pique. A vocês, o futuro!
Fonte: http://www.fronteiras.com/canalfronteiras/entrevistas/?16,16 |
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